Natal da casa dos Avós, tem coisa melhor?

Avenida Afonso Pena, Uberlândia, década de 1970. Foto divulgação.

E chega o Natal! Nada melhor do que recordar aqueles Natais da infância, família grande, casa dos avós, todo mundo reunido. Eu tive o grande privilégio de comemorar vários Natais dessa forma. E com um ingrediente especial, a distância.

O relógio da Estação Rodoviária sinaliza seis horas. Naquela bela tarde quase nublada e quente de dezembro, o sol começa a desaparecer atrás dos casarões fronteiriços à praça. Desembarcamos da jardineira que havia acabado de chegar de Coromandel, após várias horas de viagem, enfrentando as costelas de vaca e os buracos da estrada de terra. Meu estômago, como sempre, estava bem prejudicada pelo balançar da dura viagem. Meu pai pegou a mala empoeirada do teto da Jardineira.  De mãos dadas com minha mãe, grávida de nossa irmã Adélia, que nunca quis ser Amélia, e meu irmão João Artur, atravessamos a rua em direção à praça. Malas acomodadas na charrete, descemos a rua XV de Novembro em direção à rua Paes Leme. Lá em cima, três quarteirões após a avenida Getúlio Vargas, tia Neuza e tio Jesuíno, bancário do Banco da Lavoura, nos recebem, em sua casa, onde ficaremos hospedados até o ano novo. Após um banho quente, reconfortante, e o jantar, caseiro e delicioso, que tia preparou, sempre beliscando um copo de cerveja,  que ficava ao lado do fogão, vou para o sofá , já preparado com lençol e travesseiro para recuperar a energia com uma bela noite de sono pois, no dia seguinte, tem Praia Clube.

Três dias depois, com a pele dos dedos enrugada de tanto aproveitar as piscinas do Praia Clube, aquelas que ficavam onde hoje é o parque de areia infantil, é hora de vestir roupa de festa e ir para a casa da vó Antônia e vô João Motta. De carona na Lambretta do tio Jesuíno, em pé no assoalho da frente fizemos a longa viagem, da avenida Paes Leme até a rua General Osório, a três quarteirões da praça Doutor Duarte, quase esquina com a rua Lúcia Matos. Para uma criança de sete, oito anos, era uma grande distância mesmo e uma aventura fantástica.

A casa estava lotada. Os três quartos da frente, cheios de colchões. Afinal eram dez filhos, genros, noras e netos. Alguns já moravam fora e o final de ano era a oportunidade para o reencontro da família toda. Tio Oscar e a namorada, a goiana Julieta, estavam sempre presentes. Tia Clarice, com o marido Alberto, fazia a viagem mais longa, lá de Guaraí, hoje no estado do Tocantins. Nessa época tinham dois filhos, meus primos Silberto e Sigisberto. Tio Orcalino, ou simplesmente Calino, carateca e estudante de engenharia, sempre brincando com suas frases de duplo sentido, trazia a Marize, grávida da Solange, lá de Brasília. Tia Olinda recebe seu noivo, que até hoje conheço simplesmente por Zé da Olinda, vendedor da saudosa loja Carlos Saraiva. Tia Olga leva o Tãozinho, o mestre das piadinhas curtas. Podia ficar horas contando anedotas sem repetir uma sequer. Tio Joãozinho, o namorador, sempre com uma companhia diferente a cada ano. Tia Olívia, estudando para entrar na faculdade de medicina em Uberaba, tirava uma folga dos livros. Tio Toninho, o caçula, capoeirista, com uma calma no falar que lembrava as piadas baianas. E completando a família, a tia Neuza acompanhada do marido Jesuíno e de meu primo Cícero Motta, e minha mãe, Sônia, com meu pai Zé Coimbra. Os outros primos e aparentados não foram citados porque vieram depois da época contextualizada e não por esquecimento.

A arvore de natal, iluminada, ficava quase sempre, em um canto da sala, ao lado de um dos sofás individuais. O televisor Halley, fabricado em Uberlândia por Jorge Simão, cuja logomarca era um cometa, ficava na outra ponta.  Aposto que quase ninguém sabia que Uberlândia já teve até fábrica de televisores. Isso é assunto para outra história. Na sala de jantar, uma radiola enorme, cor de cerejeira, mais alta que eu, embalava a festa.

Mas a festa não acontecia dentro da casa. No quintal, tinha a maior atração. Uma videira que na época já devia ter uns trinta anos, cobria toda a área exibindo centenas de cachos verdes pendurados em toda a extensão como se fossem peças decorativas. Nos fundos, ao lado da lavanderia, ficava a cozinha auxiliar onde eram colocados todos os pratos que cada um trazia. Minha maior lembrança gustativa é da maionese da tia Neuza, deliciosa. Às vezes ela exagerava um pouco na cebola. Não faltava a leitoa assada, o peru, a ambrosia, a rabanada, a mesa de frutas e castanhas na casca que quebrávamos com pedras sobre o cimento do quintal.

À meia-noite, contagem regressiva, alguns tiros de garrucha no paredão disparados por João Motta, uma oração e todos se cumprimentavam, lembrando o espírito fraterno que sempre deve existir nessa data simbólica. Depois disso, a festa seguia até quase amanhecer. No dia seguinte, o famoso almoço-resto, com o que sobrou da festa e mais conversa fiada para passar o tempo. Era hora da criançada sair para a rua e jogar queimada até a pele avermelhar de tanta bolada. Agora era só aproveitar a semana porque no ano novo tinha repeteco.

E assim seguia a vida, naquele final da década de 1960 e início da década de 1970.

Um Feliz e Próspero Natal a todos!

Família Motta, início da década de 1960, faltando apenas a Clarice que já havia casado. Foto de arquivo próprio
Família Motta, início da década de 1960, faltando apenas a Clarice que já havia casado. Foto de arquivo próprio

 

 

O famoso "índio" de aroeira, que ficava na porta da Casa Spirandelli, estilizado para o período de Natal. Foto divulgação.
O famoso “índio” de aroeira, que ficava na porta da Casa Spirandelli, estilizado para o período de Natal. Foto divulgação.

 

Maximiliano Carneiro, o radialista da Difusora, mais conhecido como Coronel Hipopota, distribuindo refrigerante para os meninos do Patronato Buriti. Ele se vestia de Papai Noel no Natal e de Rei Momo, no Carnaval. À direita o japonês Matuda, que ensinava as crianças os trabalhos de hortaliça e cuidava da granja, cujas chocadeiras ele mesmo fabricava. Matuda morava ao lado da granja, com a esposa, dona Saka e os filhos Dioji, Maria e Tochinory. Era uma figura muito querida pelas crianças do Patronato. Foto divulgação.
Maximiliano Carneiro, o radialista da Difusora, mais conhecido como Coronel Hipopota, distribuindo refrigerante para os meninos do Patronato Buriti. Ele se vestia de Papai Noel no Natal e de Rei Momo, no Carnaval. À direita o japonês Matuda, que ensinava as crianças os trabalhos de hortaliça e cuidava da granja, cujas chocadeiras ele mesmo fabricava. Matuda morava ao lado da granja, com a esposa, dona Saka e os filhos Dioji, Maria e Tochinory. Era uma figura muito querida pelas crianças do Patronato. Foto divulgação.

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