Entre a tesoura e a prosa

Seu Nelson, trabalhando em seu salão, em 2012. Foto: https://pt.foursquare.com/v/salao-do-nelson/4ed0faa661af476c0938d1a0?openPhotoId=52752618498e3d83861a90c3

Seu Nelson já não trabalha mais. Um AVC o obrigou a largar a tesoura após o seu nonagésimo aniversário. Mas quem a teve oportunidade de entrar no Salão do Nelson, ali na esquina das ruas Olegário Maciel e Cesário Alvim, pôde escutar um pouco da história de uma Uberlândia bem diferente de hoje. Egresso da Bahia, desembarcou em Uberlândia com dinheiro emprestado, em 1943. Entre uma tesourada e outra, o “tio” Nelson relembrava fatos que marcaram uma Uberlândia da metade do século vinte, povoada, mais ou menos, por cinquenta mil almas.

Nelson contava que os prédios mais altos, quando chegou, eram o Hotel Zardo, atual Magazine Luiza, da praça Tubal Vilela e o Hotel Colombo, atual loja Riachuelo, do outro lado da mesma praça, ambos de três andares. Onde hoje está o edifício Tubal Vilela existia um posto de gasolina. “Foi onde tudo começou”, diz ele. “Depois que nomearam Tubal prefeito, ele fez o prédio. Foi o primeiro edifício de Uberlândia.”

O dono do primeiro salão com ar condicionado da cidade já atendeu de gente comum a fazendeiros poderosos e políticos influentes. E enquanto ele contava as histórias de Uberlândia, iam chegando outros fregueses. O movimento no Salão do Nelson não parava. Ele ajeitava o cliente na cadeira e começava a cortar seu cabelo, flutuando em um  semicírculo em volta da cadeira. Os passos miúdos davam a impressão de que os pés escorregavam e não saiam do chão. Ele ia e voltava enquanto as mãos habilidosas mudavam o visual do cliente conforme os fios caiam ao chão.

Cliente acomodado, bastava pedir que começava um dedo de prosa sobre os acontecimentos marcantes presenciados por esse Uberlandino, que fazem parte da história da cidade.

– Diz aí tio Nelson, sobre o quebra-quebra de 1959. E o tio Nelson começava a narrativa, com a firmeza de testemunha ocular. Algumas vezes ele era ajudado por um ou outro freguês antigo, que aguardava sua vez ou, simplesmente, estava de visita para um cafezinho.

– Tudo começou com o aumento do preço do ingresso do cinema que passou de Cr$18,00 para Cr$30,00, começa o Nelson. Os estudantes, em protesto, fizeram fila-boba na entrada das salas. Para impedir a venda de ingressos, eles passavam pelo caixa e voltavam novamente para a fila, sucessivamente. Depois disso, quebraram os cinemas. O pior viria depois. Moradores da cidade que estavam insatisfeitos com a alta do custo de vida, aderiram à manifestação e começou uma depredação. Foram para as casas atacadistas e virou uma baderna. No Cine Regente, arrancaram os móveis, puseram na rua e colocaram fogo. Na passarela em cima da linha de ferro, perto de onde hoje está o Terminal Central, deram uns tiros e uma bala acertou uma mulher que estava atravessando com um menino. A mulher morreu. O menino, não fiquei sabendo. No mercado velho, a polícia já estava esperando e conseguiu impedir a quebradeira. Arrombaram o comércio do Elias Simão, do Messias Pedreiro e da Casa Caparelli. Jogaram arroz e feijão na rua. Teve um camarada que foi com uma caminhonete, encheu de arroz e levou pra casa. A polícia foi lá e recolheu tudo. Vieram mais policiais de Belo Horizonte e das cidades vizinhas. Dizem que, no conflito, quatro pessoas morreram, doze ficaram feridas e umas duzentas foram presas. Vários meses depois, o clima de repressão ainda tomava conta da cidade. Havia toque de recolher às dez da noite. Caminhões com soldados eram comuns nas ruas. Os soldados revistavam as casas à procura de mercadorias saqueadas.

– E aquela sobre o bar da Mineira, tio Nelson? Pede outro freguês.

Ele esboça um discreto e simpático sorriso e recomeça.

– O Bar da Mineira ficava em frente ao cine Regente. Era onde a gente ia passear, depois de assistir um filme, para tomar sorvete. As moças tomavam chuvisco, que é sorvete com guaraná. Um dia, um homem deu uns tiros dentro do cinema, no meio da sessão. O povo todo saiu correndo. Tinha gente pulando a janela, descendo pelo poste que ficava em frente à janela. E a gente assistindo tudo lá do bar. Era gente correndo para todo lado.

O Bar da Mineira ficava em um prédio ao lado de onde hoje está edifício Central e no cine Regente, em frente, funciona hoje uma loja de eletrodomésticos.

E a clientela perdia a noção do tempo, escutando.

 

Avenida Afonso Pena, esquina de Olegário Maciel. À esquerda o prédio onde funcionou o hotel Zardo. à direita, o posto de gasolina de Tubal Vilela
Avenida Afonso Pena, esquina de rua Olegário Maciel. À esquerda o prédio onde funcionou o hotel Zardo. à direita, o posto de gasolina de Tubal Vilela
No destaque. a esquina entre av.Santos Dumont e av.Afonso Pena. Descendo pela Afonso Pena em direção à rua Goiás ficavam, na parte de cima, o bar da Mineira e, na parte de baixo, no telhado mais destacado, o cine Regente.
No destaque. a esquina entre av.Santos Dumont e av.Afonso Pena. Descendo pela Afonso Pena em direção à rua Goiás ficavam, na parte de cima, o bar da Mineira e, na parte de baixo, no telhado mais destacado, o cine Regente.
Praça da República, atual Tubal Vilela. Em destaque, na esquina, o hotel Colombo
Praça da República, atual Tubal Vilela. Em destaque, na esquina, o hotel Colombo

2 Comentários

  1. Boa noite.
    Apena uma correção,a titulo de colaboração,por se tratar de HISTÓRIA DA CIDADE.Conheci bem o Sr Nelson,e também conheço bem a História de Uberlândia,desde os anos 50. O Cinema citado, era o CINE UBERLÂNDIA,do Nicomedes Alves dos Santos. No mesmo Predio do cinema,ao lado da Bilheteria,tinha a Famosa AGENCIA LILA de Jerônimo Chagas. Vendia Jornais,Revistas,e os Famosos GIBÍS de Aventuras em quadrinhos,dos Heróis do Cinema. O BAR DA MINEIRA,ficava entre as Ruas Santos Dumont e Rua Goiás,quase em frente ao HOTEL REX,onde atualmenre é o prédio da GALERIA CENTRAL. Descendo pela Av Afonso Pena,ficava do lado direito,logo após o atual Café ( Butantã ). Espero ter colaborado,com essas informações. Grande abraço.

    • Nicanor, muito obrigado. Sua colaboração é muito importante. Como testemunha ocular de grande parte da história da cidade da segunda metade do século
      XX, respeito muito sua opinião e gostaria, inclusive, de contar com sua colaboração para alimentar nosso blog, seja com histórias ou com fotos que disponha. Grande abraço.

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